"Mas não foi possível: duas horas depois morria. Avisados por Cipriano da proximidade do fim, (Guida pedira-lhe ardentemente que a avisasse) Rebelo e a mulher transportaram o filho para casa: Guida queria estar ainda (ainda!) a sós com ele, no pequeno ambiente da sua esperança, do seu pequeno sonho para ninguém. Mas a surpresa, o absurdo de tudo, impediam-na de saber enfim que o filho morrera: como é possível? Sim, os olhos, os ouvidos, as mãos, só davam pobres verdades indiferentes: o que era para a vida profunda não se conhecia aí. Quanto tempo ainda para saber que o filho morrera realmente? Chorava ainda. E era como se se purificasse para atingir o limiar desse mundo fechado da amargura, mundo perfeito, uno, - mundo fértil, talvez, como o da alegria e da esperança.
Pôs-se o caixão no quarto do filho, que Guida não consentiu fosse desarrumado. Em volta, numa prateleira, os seus brinquedos: dois automóveis, uma esquadrilha de aviões de plástico, o «jeep maluco», o ursinho branco que Paula lhe dera, - vozes de infância, vozes sem tempo, o absoluto da promessa. Como era incrível que o pequeno cadáver na urna branca não dialogasse ainda com os soldados de chumbo, com o seu cavalo de pau, não dialogasse sobretudo com a manhã feliz que renascia pela cidade, abria pelo céu novo a esperança de sempre."
"Cântico Final", Vergílio Ferreira
Sem comentários:
Enviar um comentário