quarta-feira, 30 de abril de 2014

David Copperfield

"Não me importava de partir. Encontrava-me em tal estado de embrutecimento que o meu desejo era reencontrar Steerforth, se bem que por trás dele aparecesse a sombra de Creakle. Mais uma vez apareceu ao portão o carroceiro Barkis e mais uma vez a senhora Murdstone avisou a minha mãe com um «Clara!» enérgico quando ela se inclinou para me dar o beijo de despedida.
Beijei-a também, assim como ao meu irmãozinho, e então senti-me triste, não, porém, de me ir embora, pois entre nós cavara-se um abismo e a separação já existia. O seu adeus, embora caloroso, não está tão presente na minha memória como o que se seguiu.
Achava-me na carroça quando a ouvi pronunciar o meu nome. Voltei-me e vi-a à porta, com o pequenito nos braços, erguendo-o para que eu o contemplasse. O tempo ainda se mantinha frio, mas sem vento. Nem um cabelo, nem uma dobra do seu vestido se moveu enquanto ela ali ficou olhando-me intensamente e segurando sempre a criança à altura da cabeça.
Foi assim que a perdi. Foi assim que a evoquei mais tarde, no Internato - uma presença silenciosa junto da minha cama - ; olhando-me com o mesmo olhar fixo e o bebé erguido nos braços."

Charles Dickens, David Copperfield

segunda-feira, 28 de abril de 2014

Um poema por dia...nº27

Soneto do amor e da mortequando eu morrer murmura esta canção 
que escrevo para ti. quando eu morrer 
fica junto de mim, não queiras ver 
as aves pardas do anoitecer 
a revoar na minha solidão. 

quando eu morrer segura a minha mão, 
põe os olhos nos meus se puder ser, 
se inda neles a luz esmorecer, 
e diz do nosso amor como se não 

tivesse de acabar, sempre a doer, 
sempre a doer de tanta perfeição 
que ao deixar de bater-me o coração 
fique por nós o teu inda a bater, 
quando eu morrer segura a minha mão. 

Vasco Graça Moura, in "Antologia dos Sessenta Anos"



quinta-feira, 17 de abril de 2014

Um poema por dia...nº 26

Porque

Porque os outros se mascaram mas tu não 
Porque os outros usam a virtude 
Para comprar o que não tem perdão. 
Porque os outros têm medo mas tu não.

Porque os outros são os túmulos caiados 
Onde germina calada a podridão. 
Porque os outros se calam mas tu não.

Porque os outros se compram e se vendem 
E os seus gestos dão sempre dividendo. 
Porque os outros são hábeis mas tu não.

Porque os outros vão à sombra dos abrigos 
E tu vais de mãos dadas com os perigos. 
Porque os outros calculam mas tu não.

Sophia de Mello Breyner Andresen

quarta-feira, 16 de abril de 2014

Um poema (?) por dia...nº25

Doem-me a cabeça e o universo. As dores físicas mais nitidamente dores que as morais, desenvolvem, por um reflexo no espírito, tragédias incontidas nelas. Trazem uma impaciência de tudo que, como é de tudo, não exclui nenhuma das estrelas.

Não comungo, não comunguei nunca, não poderei, suponho, alguma vez comungar aquele conceito bastardo pelo qual somos, como almas, consequências de uma coisa material chamada cérebro, que existe, por nascença, dentro de outra coisa material chamada crânio. Não posso ser materialista, que é o que, creio, se chama àquele conceito, porque não posso estabelecer uma relação nítida - uma relação visual, direi - entre uma massa visível de matéria cinzenta, ou de outra cor qualquer, e esta coisa eu que por detrás do meu olhar vê os céus e os pensa, e imagina céus que não existem. Mas, ainda que nunca possa cair no abismo de supor que uma coisa possa ser outra só porque estão no mesmo lugar, como a parede e a minha sombra nela, ou que depender a alma do cérebro seja mais que depender eu, para o meu trajecto, do veículo em que vou, creio, todavia, que há entre o que em nós é só espírito e o que em nós é espírito do corpo uma relação de convívio em que podem surgir discussões. E a que surge vulgarmente é a de a pessoa mais ordinária incomodar a que o é menos.

Dói-me a cabeça hoje, e é talvez do estômago que me dói. Mas a dor, uma vez sugerida do estômago à cabeça, vai interromper as meditações que tenho por detrás de ter cérebro. Quem me tapa os olhos não me cega, porém impede-me de ver. E assim agora, porque me dói a cabeça, acho sem valia nem nobreza o espectáculo, neste momento monótono e absurdo, do que aí fora mal quero ver como mundo. Dói-me a cabeça, e isto quer dizer que tenho consciência de uma ofensa que a matéria me faz, e que, porque como todas as ofensas, me indigna, me predispõe para estar mal com toda a gente, incluindo a que está próxima porém me não ofendeu.

O meu desejo é de morrer, pelo menos temporariamente, mas isto, como disse, só porque me dói a cabeça. E neste momento, de repente, lembra-me com que melhor nobreza um dos grandes prosadores diria isto. Desenrolaria, período a período, a mágoa anónima do mundo; aos seus olhos imaginadores de parágrafos surgiriam, diversos, os dramas humanos que há na terra, e através do latejar das fontes febris erguer-se-ia no papel toda uma metafísica da desgraça. Eu, porém, não tenho nobreza estilística. Dói-me a cabeça porque me dói a cabeça. Dói-me o universo porque a cabeça me dói. Mas o universo que realmente me dói não é o verdadeiro, o que existe porque não sabe que existo, mas aquele, meu de mim, que, se eu passar as mãos pelos cabelos, me faz parecer sentir que eles sofrem todos só para me fazerem sofrer.

Livro do Desassossego, Bernardo Soares

terça-feira, 15 de abril de 2014

Um poema por dia...nº24

Quand'eu vejo las ondas
e las muyt'altas ribas,
logo mo veen ondas
al cor, pola velyda:
maldito seja 'l mare
que mi faz tanto male!

Nunca vejo las ondas

nen as altas debrocas
que mi non venham ondas
al cor, pola fremosa:
maldito seja 'l mare
que mi faz tanto male!

Se eu vejo las ondas

e vejo las costeyras,
logo mi veen ondas
al cor, pola ben feyta:
maldito seja 'l mare
que mi faz tanto male!

Rui Fernandes de Santiago

segunda-feira, 14 de abril de 2014

Um poema por dia...nº23

A PARTIDA
Agora que os dedos da Morte à roda da minha garganta
Sensivelmente começam a pressão definitiva...
E que tomo consciência exorbitando os meus olhos,
Olho p'ra trás de mim, reparo pelo passado fora
Vejo quem fui, e sobretudo quem não fui
Considero lucidamente o meu passado misto
E acho que houve um erro
Ou em eu viver ou em eu viver assim.
Será sempre que quando a Morte me entra no quarto
E fecha a porta a chave por dentro,
E a coisa é definitiva, inabalável,
Sem Cour de cassation para o meu destino findo,
Será sempre que, quando a meia-noite soa na vida
Uma exasperação de calma, uma lucidez indesejada
Acorda como uma coisa anterior à infância no meu partir?
Último arranco, extenuante clarão, de chama que a seguir se apaga
Frio esplendor do fogo de artifício antes da cinza completa,
Trovão máximo sobre as nossas cabeças, por onde
Se sabe que a trovoada, por estar [...], decresceu.
Viro-me para o passado.
Sinto-me ferir na carne.
Olho com essa espécie de alegria da lucidez completa
Para a falência instintiva que houve na minha vida
Vão apagar o último candeeiro
Na rua amanhecente de minha Alma!
Sinal de [..]
O último candeeiro que apagam!
Mas antes que eu veja a verdade, pressinto-a
Antes que a conheça, amo-a.
Viro-me para trás, para o passado, não [visiono? ];
Olho e o passado é uma espécie de futuro para mim.
Mestre, Alberto Caeiro, que eu conheci no princípio
E a quem depois abandonei como um espantalho reles,
Hoje reconheço o erro, e choro dentro de mim,
Choro com a alegria de ver a lucidez com que choro
E embandeiro em arco à minha morte e à minha falência sem fim,
Embandeiro em arco a descobri-la, só a saber quem ela é.
Ergo-me em fim das almofadas quase cómodas
E volto ao meu remorso sadio.

Álvaro de Campos

domingo, 13 de abril de 2014

Um poema por dia...nº22

1
Sôbolos rios que vão
por Babilónia, me achei,
Onde sentado chorei
as lembranças de Sião
e quanto nela passei.
Ali, o rio corrente
de meus olhos foi manado,
e, tudo bem comparado,
Babilónia ao mal presente,
Sião ao tempo passado.
2
Ali, lembranças contentes
n'alma se representaram,
e minhas cousas ausentes
se fizeram tão presentes
como se nunca passaram.
Ali, depois de acordado,
co rosto banhado em água,
deste sonho imaginado,
vi que todo o bem passado
não é gosto, mas é mágoa.
3
E vi que todos os danos
se causavam das mudanças
e as mudanças dos anos;
onde vi quantos enganos
faz o tempo às esperanças.
Ali vi o maior bem
quão pouco espaço que dura,
o mal quão depressa vem,
e quão triste estado tem
quem se fia da ventura.
4
Vi aquilo que mais val,
que então se entende milhor
quanto mais perdido for;
vi o bem suceder o mal,
e o mal, muito pior,
E vi com muito trabalho
comprar arrependimento;
vi nenhum contentamento,
e vejo-me a mim, que espalho
tristes palavras ao vento.
5
Bem são rios estas águas,
com que banho este papel;
bem parece ser cruel
variedade de mágoas
e confusão de Babel.
Como homem que, por exemplo
dos transes em que se achou,
despois que a guerra deixou,
pelas paredes do templo
suas armas pendurou:
6
Assi, despois que assentei
que tudo o tempo gastava,
da tristeza que tomei
nos salgueiros pendurei
os órgãos com que cantava.
Aquele instrumento ledo
deixei da vida passada,
dizendo: -- Música amada,
deixo-vos neste arvoredo
à memória consagrada.
7
Frauta minha que, tangendo,
os montes fazíeis vir
para onde estáveis, correndo,
e as águas, que iam decendo,
tornavam logo a subir:
jamais vos não ouvirão
os tigres que se amansavam,
e as ovelhas, que pastavam,
das ervas se fartarão
que por vos ouvir deixavam.
8
Já não fareis docemente
em rosas tornar abrolhos
na ribeira florecente;
nem poreis freio à corrente,
e mais, se for dos meus olhos.
Não movereis a espessura,
nem podereis já trazer
atrás vós a fonte pura,
pois não pudeste mover
desconcertos da ventura.
9
Ficareis oferecida
à Fama, que sempre vela,
frauta de mim tão querida;
porque, mudando-se a vida,
se mudam os gostos dela.
Acha a tenra mocidade
prazeres acomodados,
e logo a maior idade
já sente por pouquidade
aqueles gostos passados.
10
Um gosto que hoje se alcança,
amanhã já o não vejo;
assi nos traz a mudança
de esperança em esperança,
e de desejo em desejo.
Mas em vida tão escassa
que esperança será forte?
Fraqueza da humana sorte,
que, quanto da vida passa,
está receitando a morte?
11
Mas deixar nesta espessura
o canto da mocidade,
não cuide a gente futura
que será obra da idade
o que é força da ventura.
Que idade, tempo, o espanto
de ver quão ligeiro passe,
nunca em mim puderam tanto
que, posto que deixe o canto,
a causa dele deixasse.
12
Mas, em tristezas e nojos,
em gosto e contentamento,
por sol, por neve, por vento,
tendré presente á los ojos
por quien muero tan contento.
Órgãos e frauta deixava,
despojo meu tão querido,
no salgueiro que ali estava
que para troféu ficava
de quem me tinha vencido.
13
Mas lembranças da afeição
que ali cativo me tinha,
me perguntaram então:
que era da música minha
que eu cantava em Sião?
Que foi daquele cantar
das gentes tão celebrado?
Porque o deixava de usar?
Pois sempre ajuda a passar
qualquer trabalho passado.
14
Canta o caminhante ledo
no caminho trabalhoso,
por entre o espesso arvoredo;
e, de noite, o temeroso,
cantando, refreia o medo.
Canta o preso docemente
os duros grilhões tocando;
canta o sagador contente;
e o trabalhor, cantando,
o trabalho menos sente.
15
Eu, que estas cousas senti
n'alma, de mágoas tão cheia,
- Como dirá, respondi,
quem alheio está de si
doce canto em terra alheia?
Como poderá cantar
quem em choro banha o peito?
Porque, se quem trabalhar
canta por menos cansar,
eu, só, descansos enjeito.
16
Que não parece razão
nem seria cousa idónea,
por abrandar a paixão,
que cantasse em Babilónia
as cantigas de Sião.
Que, quando a muita graveza
de saudade quebrante
esta vital fortaleza,
antes moura de tristeza
que, por abrandá-la, cante.
17
Que se o fino pensamento
só na tristeza consiste,
não tenho medo ao tormento:
que morrer de puro triste,
que maior contentamento?
Nem na frauta cantarei
o que passo, e passei já,
nem menos o escreverei,
porque a pena cansará,
e eu não descansarei.
18
Que, se a vida tão pequena
se acrescenta em terra estranha,
e se amor assi o ordena,
razão é que canse a pena
de escrever pena tamanha.
Porém se, para assentar
o que sente o coração,
a pena já me cansar,
não canse para voar
a memória em Sião.
19
Terra bem-aventurada,
se, por algum movimento,
d'alma me fores mudada,
minha pena seja dada
a perpétuo esquecimento.
A pena deste desterro,
que eu mais desejo esculpida
em pedra, ou em duro ferro,
essa nunca seja ouvida,
em castigo de meu erro.
20
E se eu cantar quiser,
em Babilónia sujeito,
Hierusalém, sem te ver,
a voz, quando a mover,
se me congele no peito.
A minha língua se apegue
às fauces, pois te perdi,
se, enquanto viver assi,
houver tempo em que te negue
ou que me esqueça de ti.
21
Mas ó tu, terra de Glória,
se eu nunca vi tua essência,
como me lembras na ausência?
Não me lembras na memória,
senão na reminiscência.
Que a alma é tábua rasa,
que, com a escrita doutrina
celeste, tanto imagina,
que voa da própria casa
e sobe à pátria divina.
22
Não é, logo, a saudade
das terras onde nasceu
a carne, mas é do Céu,
daquela santa Cidade,
donde esta alma descendeu.
E aquela humana figura,
que cá me pode alterar,
não é quem se há-de buscar:
é raio da Fermosura,
que só se deve de amar.
23
Que os olhos e a luz que ateia
o fogo que cá sujeita,
não do sol, mas da candeia,
é sombra daquela Ideia
que em Deus está mais perfeita.
E os que cá me cativaram
são poderosos afeitos
que os corações têm sujeitos;
sofistas que me ensinaram
maus caminhos por direitos.
24
Destes o mando tirano
me obriga, com desatino,
a cantar ao som do dano
cantares de amor profano
por versos de amor divino.
Mas eu, lustrado co santo
Raio, na terra de dor,
de confusão e de espanto,
como hei-de cantar o canto
que só se deve ao Senhor?
25
Tanto pode o benefício
da Graça, que dá saúde,
que ordena que a vida mude;
e o que tomei por vício
me faz grau para a virtude;
e faz que este natural
amor, que tanto se preza,
suba da sombra ao Real,
da particular beleza
para a Beleza geral.
26
Fique logo pendurada
a frauta com que tangi,
ó Hierusalém sagrada,
e tome a lira dourada,
para só cantar de ti.
Não cativo e ferrolhado
na Babilónia infernal,
mas dos vícios desatado,
e cá desta a ti levado,
Pátria minha natural.
27
E se eu mais der a cerviz
a mundanos acidentes,
duros, tiranos e urgentes,
risque-se quanto já fiz
do grão livro dos viventes.
E tomando já na mão
a lira santa e capaz
doutra mais alta invenção,
cale-se esta confusão,
cante-se a visão da paz.
28
Ouça-me o pastor e o Rei,
retumbe este acento santo,
mova-se no mundo espanto,
que do que já mal cantei
a palinódia já canto.
A vós só me quero ir,
Senhor e grão Capitão
da alta torre de Sião,
à qual não posso subir,
se me vós não dais a mão.
29
No grão dia singular
que na lira o douto som
Hierusalém celebrar,
lembrai-vos de castigar
os ruins filhos de Edom.
Aqueles que tintos vão
no pobre sangue inocente,
soberbos co poder vão,
arrasai-os igualmente,
conheçam que humanos são.
30
E aquele poder tão duro
dos afeitos com que venho,
que encendem alma e engenho,
que já me entraram o muro
do livre alvídrio que tenho;
estes, que tão furiosos
gritando vêm a escalar-me,
maus espíritos danosos,
que querem, como forçosos,
do alicerce derrubar-me;
31
Derrubai-os, fiquem sós,
de forças fracos, imbeles,
porque não podemos nós
nem com eles ir a Vós
nem sem Vós tirar-nos deles.
Não basta minha fraqueza
para me dar defensão,
se vós, santo Capitão,
nesta minha fortaleza
não puserdes guarnição.
32
E tu, ó carne que encantas,
filha de Babel tão feia,
toda de misérias cheia,
que mil vezes te levantas,
contra quem te senhoreia:
beato só pode ser
quem, co a ajuda celeste,
contra ti prevalecer,
e te vier a fazer
o mal que lhe tu fizeste.
33
Quem, com disciplina crua,
se fere que ua vez,
cuja alma, de vícios nua,
faz nódoas na carne sua,
que já a carne n'alma fez.
E beato quem tomar
seus pensamentos recentes
e em nacendo os afogar,
por não virem a parar
em vícios graves e urgentes.
34
Quem com eles logo der
na pedra do furor santo,
e, batendo, os desfizer
na Pedra, que veio a ser
enfim cabeça do Canto;
quem logo, quando imagina
nos vícios da carne má,
os pensamentos declina
àquela Carne divina
que na Cruz esteve já;
35
Quem do vil contentamento
cá deste mundo visível,
quanto ao homem for possível,
passar logo o entendimento
para o mundo inteligível:
ali achará alegria
em tudo perfeita e cheia
de tão suave harmonia,
que, nem por pouca, recreia,
nem, por sobeja, enfastia.
36
Ali verá tão profundo
mistério na suma Alteza,
que, vencida a natureza,
os mores faustos do mundo
julgue por maior baixeza.
Ó tu, divino aposento,
minha pátria singular!
Se só com te imaginar
tanto sobe o entendimento,
que fará se em ti se achar?
37
Ditoso quem se partir
para ti, terra excelente,
tão justo e tão penitente
que, depois de a ti subir
lá descanse eternamente.


Luis de Camões

sexta-feira, 11 de abril de 2014

Um poema por dia...nº21

Soneto

Ao Luís Vaz, recordando o convívio da nossa mocidade.

Não pode Amor por mais que as falas mude
exprimir quanto pesa ou quanto mede.
Se acaso a comoção concede
é tão mesquinho o tom que o desilude.

Busca no rosto a cor que mais o ajude,
magoado parecer os olhos pede,
pois quando a fala a tudo o mais excede
não pode ser Amor com tal virtude.

Também eu das palavras me arredeio,
também sofro do mal sem saber onde
busque a expressão maior do meu anseio.

E acaso perde, o Amor que a fala esconde,
em verdade, em beleza, em doce enleio?
Olha bem os meus olhos, e responde.

António Gedeão

quarta-feira, 9 de abril de 2014

Um poema por dia...nº20

As palavras

São como um cristal,

as palavras.
Algumas, um punhal,
um incêndio.
Outras,
orvalho apenas.

Secretas vêm, cheias de memória.
Inseguras navegam:
barcos ou beijos,
as águas estremecem.

Desamparadas, inocentes,
leves.
Tecidas são de luz
e são a noite.
E mesmo pálidas
verdes paraísos lembram ainda.

Quem as escuta? Quem
as recolhe, assim,
cruéis, desfeitas,
nas suas conchas puras?

Eugénio de Andrade

terça-feira, 8 de abril de 2014

Um poema por dia...nº19

NÃO TE AMO

Não te amo, quero-te: o amor vem d'alma.
E eu n'alma – tenho a calma,
A calma – do jazigo.
Ai! não te amo, não.

Não te amo, quero-te: o amor é vida.
E a vida – nem sentida
A trago eu já comigo.
Ai, não te amo, não!

Ai! não te amo, não; e só te quero
De um querer bruto e fero
Que o sangue me devora,
Não chega ao coração.

Não te amo. És bela; e eu não te amo, ó bela.
Quem ama a aziaga estrela
Que lhe luz na má hora
Da sua perdição?

E quero-te, e não te amo, que é forçado,
De mau, feitiço azado
Este indigno furor.
Mas oh! não te amo, não.

E infame sou, porque te quero; e tanto
Que de mim tenho espanto,
De ti medo e terror...
Mas amar!... não te amo, não.

Almeida Garrett

segunda-feira, 7 de abril de 2014

Um poema (?) por dia...nº18

"O nada integral, absoluto. Quando recuperou os sentidos, já no seu quarto, teve essa enorme surpresa de tudo se ter  passado, de o nada daquela sua morte temporária ter coincidido com um valor em tempo que ele sabia ser grande, de, enfim, ter estado morto e não poder desesperadamente imaginar a morte. (Quantas vezes, mais tarde, ele havia de lembrar esta sua experiência, para roubar um pouco do segredo à grande noite! Impossível: dentro da morte não havia espaço, não havia um instante de tempo para incluir nele uma ideia, uma imagem. O nada da morte era uma destruição desse próprio nada - fechado, absurdo, sem limites, sem nada de discernível. E, todavia, não era isto também: para ser «alguma coisa», tinha de contemplá-lo das próprias margens da vida. Vão mistério, incrível irrealidade - e tão fascinante!)."

Cântico Final, Vergilio Ferreira

domingo, 6 de abril de 2014

Um poema (?) por dia...nº17

"Mas não foi possível: duas horas depois morria. Avisados por Cipriano da proximidade do fim, (Guida pedira-lhe ardentemente que a avisasse) Rebelo e a mulher transportaram o filho para casa: Guida queria estar ainda (ainda!) a sós com ele, no pequeno ambiente da sua esperança, do seu pequeno sonho para ninguém. Mas a surpresa, o absurdo de tudo, impediam-na de saber enfim que o filho morrera: como é possível? Sim, os olhos, os ouvidos, as mãos, só davam pobres verdades indiferentes: o que era para a vida profunda não se conhecia aí. Quanto tempo ainda para saber que o filho morrera realmente? Chorava ainda. E era como se se purificasse para atingir o limiar desse mundo fechado da amargura, mundo perfeito, uno, - mundo fértil, talvez, como o da alegria e da esperança.
Pôs-se o caixão no quarto do filho, que Guida não consentiu fosse desarrumado. Em volta, numa prateleira, os seus brinquedos: dois automóveis, uma esquadrilha de aviões de plástico, o «jeep maluco», o ursinho branco que Paula lhe dera, - vozes de infância, vozes sem tempo, o absoluto da promessa. Como era incrível que o pequeno cadáver na urna branca não dialogasse ainda com os soldados de chumbo, com o seu cavalo de pau, não dialogasse sobretudo com a manhã feliz que renascia pela cidade, abria pelo céu novo a esperança de sempre."

"Cântico Final", Vergílio Ferreira

Um poema (?) por dia...nº16

"- Bom. Há duas normas de vida e mais nenhuma. Não bem normas, não há «normas» de nada. Enfim, há dois modos de viver: ou se mete a vida na morte ou se mete a morte na vida.
  parou, afagando a pera, fitou Mário de través, como se suspeitasse uma acusação:
 - Claro que eu meto a morte na vida. Que há mais do que a vida? Mais nada, mais nada. A morte não existe.
 Voltou a meditar, alheado:
 - Sim, sim. Oh, a Dina, a minha pobre mulher, se a lembro. Lembro-a eu, lembram-na os gatos, a Vitorina, a cadeira de braços... Mas ela não lembra nada, e é isso que importa. To die, to sleep, no more. Eis que a manhã vem aí e o sol e a vida, e a terra se vai cumprir sem embaraços. Sim, sim, não adianta falar. A vida não se aprende, não se ensina...
- Nem a morte..."

Cântico Final, Vergilio Ferreira

sexta-feira, 4 de abril de 2014

Um poema por dia...nº15

Meio da vida
Com peras amarelas
E repleta de rosas silvestres
A terra estende-se por cima do lago,
Vós graciosos cisnes!
E embriagados de beijos
Molhais a cabeça
Na sagrada e sóbria água.

Pobre de mim ! onde irei buscar
Quando for Inverno, as flores e
Onde o brilho do Sol
E as sombras da terra ?
Frios e mudos,
os muros erguem-se;
ao vento, as bandeiras tilintam.

Höderlin

quinta-feira, 3 de abril de 2014

Quem me tira deste mar profundo? Quem me estende a mão? Estou prestes a deixar-me levar por estas águas caudalosas. A esperança desvanece-se perante a imensidão que me rodeia. Sou o NADA. E quando desaparecer, menos de nada serei...

Um poema por dia...nº14

                                                                                           

Nom me posso pagar tanto
do canto
das aves nem de seu som

nem d'amor nem de missom

5nem d'armas - ca hei espanto
por quanto

mui perigosas som

- come d'um bom galeom

que mi alongue muit'aginha

10deste demo da campinha,

u os alacrães som;
ca dentro, no coraçom,

senti deles a espinha.
  
E juro par Deus lo santo
15que manto

não tragerei, nem granhom,

nem terrei d'amor razom,

nem d'armas, porque quebranto

chanto

20vem delas tod'a sazom;

mais tragerei um dornom,

e irei pela marinha
vendend'azeite e farinha,

e fugirei do poçom
25do alacrã, ca eu nom
lhi sei outra meezinha.
  

Nem de lançar a tavolado
pagado
nom sõo, se Deus m'ampar,

30adés, nem de bafordar;
e andar de noute armado,

sem grado

o faço, e a roldar;
ca mais me pago do mar
35que de seer cavaleiro;

ca eu foi já marinheiro

e quero-m'oimais guardar
do alacrã, e tornar
ao que me foi primeiro.
  

40direi-vos um recado:

pecado
nunca me pod'enganar
que me faça já falar
em armas, ca nom m'é dado
45- doado

m'é de as eu razõar,
poilas nom hei a provar;

ante quer'andar sinlheiro

e ir come mercadeiro
50algũa terra buscar

u me nom possam culpar

alacrã negro nem veiro.

Afonso X