quinta-feira, 29 de maio de 2014

Pureza

"Todo este tempo continuei a amar Dora, e com intensidade crescente. Pensar nela constituía o meu refúgio no meio das desilusões e tristezas, o que de certa maneira me compensou da perda do amigo. Quanto mais me lastimava, a mim ou aos outros, mais achava consolo na recordação de Dora. Quanto maior fosse a porção de mentiras e sofrimentos deste mundo, maior brilho tomava no zénite a estrela pura que se chamava Dora. Não me parece que tivesse uma ideia muito certa da natureza de Dora nem do seu parentesco com os entes siderais; mas estou convencido de que repudiaria indignado a hipótese de ela ser apenas uma criatura humana, como qualquer outra rapariga do nosso mundo.
Estava, se assim me posso exprimir, todo impregnado de Dora. Do oceano do meu amor podia tirar a água necessária para afogar quem quisesse: ainda ficaria bastante para o resto da minha vida."

David Copperfield, Charles Dickens

sexta-feira, 23 de maio de 2014

Nas grandes horas em que a insónia avulta 
Como um novo universo doloroso, 
E a mente é clara com um ser que insulta 
O uso confuso com que o dia é ocioso, 

Cismo, embebido em sombras de repouso 
Onde habitam fantasmas e a alma é oculta, 
Em quanto errei e quanto ou dor ou gozo 
Me farão nada, como frase estulta. 

Cismo, cheio de nada, e a noite é tudo. 
Meu coração, que fala estando mudo, 
Repete seu monótono torpor 

Na sombra, no delírio da clareza, 
E não há Deus, nem ser, nem Natureza 
E a própria mágoa melhor fora dor. 

Fernando Pessoa