segunda-feira, 29 de agosto de 2016

A hora absoluta

O guarda tocou uma campainha, alguém veio à porta, ele repetiu
- Uma cerveja
e alguém deve ter repetido a ordem até à alavanca final. Sorrio, oh, estou-me nas tintas até aos pêlos do meu ser - o ar está cheio de sol. Alheado, entretenho-me, a atenção dormente como se a um sussurro de um calor de sesta. Na pele da água, voláteis, as películas de luz estremecem, poalha fina. Uma vaga passa, invisível e grande, ao balancear dos meus olhos pelo horizonte, sinto-me bem. É uma hora suspensa, creio que é razão. Houve o amanhecer já antes, vai haver a tarde depois, agora não há nada entre antes e depois. É uma hora absoluta, creio que devia nascer um deus. Que deus? Sei lá. Um deus. Há os que nascem na noite e trazem a noite com eles e a treva e o ranger de dentes. Ou o dia, mas por engano. Devem ter nascido outros pela manhã, hei-de ver nas mitologias. Quanto a esta hora, é flagrante e inteira, há-de haver um deus qualquer à sua espera. Não sou profeta, não trago Messias nenhum nas algibeiras para o jogo da laranjinha. Mãos limpas, jogo limpo. Sei a palavra do fim, a palavra honesta do fim, que foi o que me calhou, e levanto-a ao ar como um gládio, que sempre é mais visível e mais nobre que uma espada:
-Cegos de todo o mundo, deve!

Vergílio Ferreira, Nítido Nulo

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