terça-feira, 30 de agosto de 2016

Violoncelo



Chorai, arcadas
Do violoncelo,
Convulsionadas.
Pontes aladas
De pesadelo...

De que esvoaçam,
Brancos, os arcos.
Por baixo passam,
Se despedaçam,
No rio os barcos.

Fundas, soluçam
Caudais de choro.
Que ruínas, ouçam...
Se se debruçam,
Que sorvedouro!

Lívidos astros,
Soidões lacustres...
Lemes e mastros...
E os alabastros
Dos balaústres!

Urnas quebradas.
Blocos de gelo!
Chorai, arcadas
Do violoncelo,
Despedaçadas...

Camilo Pessanha

...

Não somos nada. Há dias em que viver cansa. E dói. E mata. Pedacinho a pedacinho, a esperança vai desaparecendo. E a certeza de que nada ficará de nós leva a que nada pareça valer a pena. É difícil navegar entre a euforia e a disforia. Passar de um estado ao outro num ápice. Achar que a nossa vida é maravilhosa e no momento seguinte nada mais fazer sentido. Ficar feliz com a coisa mais pequena e depois ver todos os sonhos destruídos.A noite é solitária. E a companhia que eu quero nas noites solitárias é nenhuma. Resto eu mesma, embrenhada na minha tristeza.

segunda-feira, 29 de agosto de 2016

A hora absoluta

O guarda tocou uma campainha, alguém veio à porta, ele repetiu
- Uma cerveja
e alguém deve ter repetido a ordem até à alavanca final. Sorrio, oh, estou-me nas tintas até aos pêlos do meu ser - o ar está cheio de sol. Alheado, entretenho-me, a atenção dormente como se a um sussurro de um calor de sesta. Na pele da água, voláteis, as películas de luz estremecem, poalha fina. Uma vaga passa, invisível e grande, ao balancear dos meus olhos pelo horizonte, sinto-me bem. É uma hora suspensa, creio que é razão. Houve o amanhecer já antes, vai haver a tarde depois, agora não há nada entre antes e depois. É uma hora absoluta, creio que devia nascer um deus. Que deus? Sei lá. Um deus. Há os que nascem na noite e trazem a noite com eles e a treva e o ranger de dentes. Ou o dia, mas por engano. Devem ter nascido outros pela manhã, hei-de ver nas mitologias. Quanto a esta hora, é flagrante e inteira, há-de haver um deus qualquer à sua espera. Não sou profeta, não trago Messias nenhum nas algibeiras para o jogo da laranjinha. Mãos limpas, jogo limpo. Sei a palavra do fim, a palavra honesta do fim, que foi o que me calhou, e levanto-a ao ar como um gládio, que sempre é mais visível e mais nobre que uma espada:
-Cegos de todo o mundo, deve!

Vergílio Ferreira, Nítido Nulo

domingo, 28 de agosto de 2016

Angústia...

Van Gogh

Esta velha angústia, 
Esta angústia que trago há séculos em mim, 
Transbordou da vasilha, 
Em lágrimas, em grandes imaginações, 
Em sonhos em estilo de pesadelo sem terror, 
Em grandes emoções súbitas sem sentido nenhum. 

Transbordou. 
Mal sei como conduzir-me na vida 
Com este mal-estar a fazer-me pregas na alma! 
Se ao menos endoidecesse deveras! 
Mas não: é este estar entre, 
Este quase, 
Este poder ser que..., 
Isto. 

Um internado num manicômio é, ao menos, alguém, 
Eu sou um internado num manicômio sem manicômio. 
Estou doido a frio, 
Estou lúcido e louco, 
Estou alheio a tudo e igual a todos: 
Estou dormindo desperto com sonhos que são loucura 
Porque não são sonhos. 
Estou assim... 

Pobre velha casa da minha infância perdida! 
Quem te diria que eu me desacolhesse tanto! 
Que é do teu menino? Está maluco. 
Que é de quem dormia sossegado sob o teu teto provinciano? 
Está maluco. 
Quem de quem fui? Está maluco. Hoje é quem eu sou. 

Se ao menos eu tivesse uma religião qualquer! 
Por exemplo, por aquele manipanso 
Que havia em casa, lá nessa, trazido de África. 
Era feiíssimo, era grotesco, 
Mas havia nele a divindade de tudo em que se crê. 
Se eu pudesse crer num manipanso qualquer — 
Júpiter, Jeová, a Humanidade — 
Qualquer serviria, 
Pois o que é tudo senão o que pensamos de tudo? 

Estala, coração de vidro pintado! 

Álvaro de Campos

sábado, 27 de agosto de 2016

Para sempre


Para sempre. Aqui estou. É uma tarde de Verão, está quente. Tarde de Agosto. Olho-a em volta, na sufocação do calor, na posse final do meu destino.E uma comoção abrupta - sê calmo. Na aprendizagem serena do silêncio. Nada mais terás que aprender? Nada mais. Tu, e a vida que em ti foi acontecendo. E a que foi acontecendo aos outros- é a História que se diz?abro a porta do quintal. É um portão desconjuntado, as dobradiças a despegarem-se. Há muito tempo já que aqui não vinhas.(...) Abro a porta devagar, ela range para o espaço do jardim. É um jardim morto, as plantas secas, os canteiros arrasados nas pedras que os limitavam. Alguns têm só terra ou hastes secas de roseiras. Vejo-as do portão, o carro à entrada a trabalhar. Depois, meto-o na garagem, que é um barracão ao lado da casa. Um silêncio súbito, silêncio de terra.(...) Reparo agora melhor no pequeno jardim. Uma selva bravia. As plantas selvagens irromperam de todo o lado, aos cantos dos muros à volta, junto à casa. Há´algumas armações de madeira ainda, já apodrecidas, suspensas de arames, sem flores. Olho-o um instante, olho a casa, circunvago o olhar. Preparar o futuro- o futuro... E uma súbita ternura não sei porquê. Silêncio. Até ao oculto da tua comoção. Preparar o futuro, preparação para a morte. Está certo. Parte-se carregado de coisas, elas vão-se perdendo pelo caminho. Se ao menos uma breve ideia. Não tenho. Não é bem a vida que faz falta- só aquilo que a faz viver.

Para sempre, Vergílio Ferreira

quinta-feira, 25 de agosto de 2016

Insónia



Não durmo, nem espero dormir. 
Nem na morte espero dormir.

Espera-me uma insônia da largura dos astros,
E um bocejo inútil do comprimento do mundo.

Não durmo; não posso ler quando acordo de noite,
Não posso escrever quando acordo de noite,
Não posso pensar quando acordo de noite —
Meu Deus, nem posso sonhar quando acordo de noite!
Ah, o ópio de ser outra pessoa qualquer!
Não durmo, jazo, cadáver acordado, sentindo,
E o meu sentimento é um pensamento vazio.
Passam por mim, transtornadas, coisas que me sucederam
— Todas aquelas de que me arrependo e me culpo;
Passam por mim, transtornadas, coisas que me não sucederam
— Todas aquelas de que me arrependo e me culpo;
Passam por mim, transtornadas, coisas que não são nada,
E até dessas me arrependo, me culpo, e não durmo.
Não tenho força para ter energia para acender um cigarro.
Fito a parede fronteira do quarto como se fosse o universo.
Lá fora há o silêncio dessa coisa toda.
Um grande silêncio apavorante noutra ocasião qualquer,
Noutra ocasião qualquer em que eu pudesse sentir.
Estou escrevendo versos realmente simpáticos —
Versos a dizer que não tenho nada que dizer,
Versos a teimar em dizer isso,
Versos, versos, versos, versos, versos...
Tantos versos...
E a verdade toda, e a vida toda fora deles e de mim!
Tenho sono, não durmo, sinto e não sei em que sentir.
Sou uma sensação sem pessoa correspondente,
Uma abstração de autoconsciência sem de quê,
Salvo o necessário para sentir consciência,
Salvo — sei lá salvo o quê...
Não durmo. Não durmo. Não durmo.
Que grande sono em toda a cabeça e em cima dos olhos e na alma!
Que grande sono em tudo exceto no poder dormir!
Ó madrugada, tardas tanto... Vem...
Vem, inutilmente,
Trazer-me outro dia igual a este, a ser seguido por outra noite igual a esta...
Vem trazer-me a alegria dessa esperança triste,
Porque sempre és alegre, e sempre trazes esperança,
Segundo a velha literatura das sensações.
Vem, traz a esperança, vem, traz a esperança.
O meu cansaço entra pelo colchão dentro.
Doem-me as costas de não estar deitado de lado.
Se estivesse deitado de lado doíam-me as costas de estar deitado de lado.
Vem, madrugada, chega!
Que horas são? Não sei.
Não tenho energia para estender uma mão para o relógio,
Não tenho energia para nada, para mais nada...
Só para estes versos, escritos no dia seguinte.
Sim, escritos no dia seguinte.
Todos os versos são sempre escritos no dia seguinte.
Noite absoluta, sossego absoluto, lá fora.
Paz em toda a Natureza.
A Humanidade repousa e esquece as suas amarguras.
Exatamente.
A Humanidade esquece as suas alegrias e amarguras.
Costuma dizer-se isto.
A Humanidade esquece, sim, a Humanidade esquece,
Mas mesmo acordada a Humanidade esquece.
Exatamente. Mas não durmo.
Álvaro de Campos

domingo, 21 de agosto de 2016

Domingo

Domingo irei para as hortas na pessoa dos outros,
Contente da minha anonimidade.
Domingo serei feliz - eles, eles...
Domingo...
Hoje é a quinta-feira da semana que não tem domingo...
Nenhum domingo...
Nunca domingo...
Mas sempre haverá alguém nas hortas no domingo que vem.
Assim passa a vida.
Sobretudo para quem sente,
Mais ou menos para quem pensa:
Haverá sempre alguém nas hortas ao domingo...
Não no nosso domingo,
Não no meu domingo,
Não no domingo...
Mas haverá sempre alguém nas hortas ao domingo...

Álvaro de Campos
9/08/1934