quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

A Fenda Aberta

"Agora penso isto: que o estado natural do adulto sensível é uma infelicidade esclarecida. Também penso que o desejo de adquirirmos, na nossa idade adulta e mediante «um esforço inquebrantável» (como dizem as pessoas que ganham a vida a dizê-lo), uma elevação superior à que já temos, só nos acrescenta infelicidade ao final - esse final para onde tendem  nossa juventude e a nossa esperança. A minha felicidade do passado tantas vezes se aproximou de um delírio, que nem mesmo podia partilhá-la com a pessoa mais querida e tinha de passeá-la longe, em ruas e becos tranquilos; só fragmentos dela foram destilados nas linhas dos meus livros; - e julgo que essa minha felicidade, ou talento para a auto-alucinação, ou o que quiserem, não era vulgar. Não era uma coisa normal; era , antes, anormal - tão anormal como um Boom; e que a minha experiência recente tem um paralelo na onda de desespero que varreu esta nação quando o Boom terminou.
A vida que vou viver vai ser traçada em novos moldes, apesar de eu ter levado alguns meses a certificar-me disso. E tal como o negro americano suportou condições de vida intoleráveis com um estoicismo risonho, embora isso lhe tenha sacrificado a noção de verdade - neste meu caso também haverá um preço a pagar. Não mais voltarei a gostar de carteiros, nem de merceeiros, nem de chefes de redacção, nem de maridos da prima; e a resposta a isto será antipatizarem comigo, o que não voltará a dar-me uma vida muito agradável e obrigar-me-á a ter sempre afixado o aviso cave canem por cima da porta. Mas assim mesmo vou tentar ser um animal cordato; e se me atirarem um osso com bastante carne, talvez me seja possível lamber-vos a mão."

F. Scott Fitzgerald, A Fenda Aberta, Assírio e Alvim, pp.125-126.

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