sexta-feira, 19 de dezembro de 2014

Não Digas Nada!

Não digas nada!

Nem mesmo a verdade 
Há tanta suavidade em nada se dizer 
E tudo se entender — 
Tudo metade 
De sentir e de ver... 
Não digas nada 
Deixa esquecer 

Talvez que amanhã 
Em outra paisagem 
Digas que foi vã 
Toda essa viagem 
Até onde quis 
Ser quem me agrada... 
Mas ali fui feliz 
Não digas nada. 

Fernando Pessoa, in "Cancioneiro" 

quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

A Fenda Aberta

"Agora penso isto: que o estado natural do adulto sensível é uma infelicidade esclarecida. Também penso que o desejo de adquirirmos, na nossa idade adulta e mediante «um esforço inquebrantável» (como dizem as pessoas que ganham a vida a dizê-lo), uma elevação superior à que já temos, só nos acrescenta infelicidade ao final - esse final para onde tendem  nossa juventude e a nossa esperança. A minha felicidade do passado tantas vezes se aproximou de um delírio, que nem mesmo podia partilhá-la com a pessoa mais querida e tinha de passeá-la longe, em ruas e becos tranquilos; só fragmentos dela foram destilados nas linhas dos meus livros; - e julgo que essa minha felicidade, ou talento para a auto-alucinação, ou o que quiserem, não era vulgar. Não era uma coisa normal; era , antes, anormal - tão anormal como um Boom; e que a minha experiência recente tem um paralelo na onda de desespero que varreu esta nação quando o Boom terminou.
A vida que vou viver vai ser traçada em novos moldes, apesar de eu ter levado alguns meses a certificar-me disso. E tal como o negro americano suportou condições de vida intoleráveis com um estoicismo risonho, embora isso lhe tenha sacrificado a noção de verdade - neste meu caso também haverá um preço a pagar. Não mais voltarei a gostar de carteiros, nem de merceeiros, nem de chefes de redacção, nem de maridos da prima; e a resposta a isto será antipatizarem comigo, o que não voltará a dar-me uma vida muito agradável e obrigar-me-á a ter sempre afixado o aviso cave canem por cima da porta. Mas assim mesmo vou tentar ser um animal cordato; e se me atirarem um osso com bastante carne, talvez me seja possível lamber-vos a mão."

F. Scott Fitzgerald, A Fenda Aberta, Assírio e Alvim, pp.125-126.

terça-feira, 2 de dezembro de 2014

Ausência




Por muito tempo achei que a ausência é falta.
E lastimava, ignorante, a falta.
Hoje não a lastimo.
Não há falta na ausência.
A ausência é um estar em mim.
E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços,
que rio e danço e invento exclamações alegres,
porque a ausência, essa ausência assimilada,
ninguém a rouba mais de mim.

Carlos Drummond de Andrade