sexta-feira, 24 de outubro de 2014

Retrato ardente

Entre os teus lábios 
é que a loucura acode 
desce à garganta, 
invade a água. 

No teu peito 
é que o pólen do fogo 
se junta à nascente, 
alastra na sombra. 

Nos teus flancos 
é que a fonte começa 
a ser rio de abelhas, 
rumor de tigre. 

Da cintura aos joelhos 
é que a areia queima, 
o sol é secreto, 
cego o silêncio. 

Deita-te comigo. 
Ilumina meus vidros. 
Entre lábios e lábios 
toda a música é minha. 

Eugénio de Andrade, in "Obscuro Domínio"

terça-feira, 14 de outubro de 2014

"Poema em Linha Recta" de Álvaro de Campos por Osmar Prado


Palavra

Tenho o dom da palavra, assim como tu caro amigo. A palavra que me revela o teu mundo, e que me faz revelar o meu! A minha palavra, janela para o discurso, meio para a interacção. 
Ela é minha e mais ninguém a possui verdadeiramente porque ela está profundamente ligada ao meu pensamento.  Palavra, cofre de sentimentos que todos desconhecem existir, que ninguém vê chegar, que ninguém vê partir... O teu forte impenetrável para quem te quer conhecer, para quem te quer ouvir... Mas...e se as palavras não conseguirem chegar ao âmago do nosso pensamento? Onde ficamos?

domingo, 12 de outubro de 2014

Neruda



Sí­ cada dí­a cae, dentro de cada noche,
hay un pozo
donde la claridad está prisionera.

Hay que sentarse en el borde
del pozo de la sombra
y pescar la luz caí­da
con paciencia.

Pablo Neruda

quinta-feira, 9 de outubro de 2014

Sísifo



Recomeça....
Se puderes,
Sem angústia e sem pressa.
E os passos que deres,
Nesse caminho duro
Do futuro,
Dá-os em liberdade.
Enquanto não alcances
Não descanses.
De nenhum fruto queiras só metade.

E, nunca saciado,
Vai colhendo
Ilusões sucessivas no pomar.
Sempre a sonhar
E vendo,
Acordado,
O logro da aventura.
És homem, não te esqueças!
Só é tua a loucura
Onde, com lucidez, te reconheças...

Miguel Torga


*Pintura: Sísifo, de Tiziano, 1549

segunda-feira, 6 de outubro de 2014

Dor

Doem-me a cabeça e o universo. As dores físicas mais nitidamente dores que as morais, desenvolvem, por um reflexo no espírito, tragédias incontidas nelas. Trazem uma impaciência de tudo que, como é de tudo, não exclui nenhuma das estrelas.

Não comungo, não comunguei nunca, não poderei, suponho, alguma vez comungar aquele conceito bastardo pelo qual somos, como almas, consequências de uma coisa material chamada cérebro, que existe, por nascença, dentro de outra coisa material chamada crânio. Não posso ser materialista, que é o que, creio, se chama àquele conceito, porque não posso estabelecer uma relação nítida - uma relação visual, direi - entre uma massa visível de matéria cinzenta, ou de outra cor qualquer, e esta coisa eu que por detrás do meu olhar vê os céus e os pensa, e imagina céus que não existem. Mas, ainda que nunca possa cair no abismo de supor que uma coisa possa ser outra só porque estão no mesmo lugar, como a parede e a minha sombra nela, ou que depender a alma do cérebro seja mais que depender eu, para o meu trajecto, do veículo em que vou, creio, todavia, que há entre o que em nós é só espírito e o que em nós é espírito do corpo uma relação de convívio em que podem surgir discussões. E a que surge vulgarmente é a de a pessoa mais ordinária incomodar a que o é menos.

Dói-me a cabeça hoje, e é talvez do estômago que me dói. Mas a dor, uma vez sugerida do estômago à cabeça, vai interromper as meditações que tenho por detrás de ter cérebro. Quem me tapa os olhos não me cega, porém impede-me de ver. E assim agora, porque me dói a cabeça, acho sem valia nem nobreza o espectáculo, neste momento monótono e absurdo, do que aí fora mal quero ver como mundo. Dói-me a cabeça, e isto quer dizer que tenho consciência de uma ofensa que a matéria me faz, e que, porque como todas as ofensas, me indigna, me predispõe para estar mal com toda a gente, incluindo a que está próxima porém me não ofendeu.

O meu desejo é de morrer, pelo menos temporariamente, mas isto, como disse, só porque me dói a cabeça. E neste momento, de repente, lembra-me com que melhor nobreza um dos grandes prosadores diria isto. Desenrolaria, período a período, a mágoa anónima do mundo; aos seus olhos imaginadores de parágrafos surgiriam, diversos, os dramas humanos que há na terra, e através do latejar das fontes febris erguer-se-ia no papel toda uma metafísica da desgraça. Eu, porém, não tenho nobreza estilística. Dói-me a cabeça porque me dói a cabeça. Dói-me o universo porque a cabeça me dói. Mas o universo que realmente me dói não é o verdadeiro, o que existe porque não sabe que existo, mas aquele, meu de mim, que, se eu passar as mãos pelos cabelos, me faz parecer sentir que eles sofrem todos só para me fazerem sofrer.

Bernardo Soares, Livro do Desassossego

quarta-feira, 1 de outubro de 2014

O mar revolto





Por vezes, para atingir um estado de calmaria e sossego, é preciso passar por uma tempestade. A minha já há muito que se levantou. No início, confusa, desorganizada, caótica. O meu barco virou e vi-me perdida em alto mar, sozinha, sem saber como reagir, e tentada a deixar-me levar por aquelas ondas que pareciam querer engolir-me. Deixei de ver as coisas nitidamente, demasiado embrulhada no meio daquela confusão de sentimentos.

Mas as tempestades não duram sempre. O mar acalma, o sol aparece e surge no horizonte um arco-íris de possibilidades. 




*Quadro 1: Naufrágio (1805), William Turner, Tate Gallery - Londres
*Quadro 2: Castelo Arundel, com arco-iris (1824), William Turner, Mus. Britânico - Londres