segunda-feira, 31 de março de 2014


"You mean the Garden of death"she whispered."yes, death. Death must be so beautiful. To lie in the soft brown earth, with the grasses above one's head, and listen to silence. To have no yesterday and no tomorrow. To forget time, to forgive life, to be at peace. You can help me.You can open for me the portals of Death's house, for love is always with you, and Love is stronger than Death is."


The Canterville Ghost, Oscar Wilde

Um poema por dia...nº11

Não: devagar. 
Devagar, porque não sei 
Onde quero ir. 
Há entre mim e os meus passos 
Uma divergência instintiva. 
Há entre quem sou e estou 
Uma diferença de verbo 
Que corresponde à realidade.

Devagar...
Sim, devagar...
Quero pensar no que quer dizer
Este devagar...
Talvez o mundo exterior tenha pressa demais.
Talvez a alma vulgar queira chegar mais cedo.
Talvez a impressão dos momentos seja muito próxima...

Talvez isso tudo...
Mas o que me preocupa é esta palavra devagar...
O que é que tem que ser devagar?
Se calhar é o universo...
A verdade manda Deus que se diga.
Mas ouviu alguém isso a Deus?

Álvaro de Campos
Abro os olhos para o Crepúsculo. A noite chega, e eu acordo sem outro propósito que não seja sentir a dor. Olho para trás e quero voltar àquele lugar que me atrai como um íman. Não era um lugar feliz, mas era um lugar onde eu podia ser eu. Já não me (re)conheço.

domingo, 30 de março de 2014

Um poema por dia...nº10

ESTOU VIVO E ESCREVO SOL

Eu escrevo versos ao meio-dia
e a morte ao sol é uma cabeleira
que passa em fios frescos sobre a minha cara de vivo
Estou vivo e escrevo sol

Se as minhas lágrimas e os meus dentes cantam
no vazio fresco
é porque aboli todas as mentiras
e não sou mais que este momento puro
a coincidência perfeita
no acto de escrever e sol

A vertigem única da verdade em riste
a nulidade de todas as próximas paragens
navego para o cimo
tombo na claridade simples
e os objectos atiram suas faces
e na minha língua o sol trepida

Melhor que beber vinho é mais claro
ser no olhar o próprio olhar
a maravilha é este espaço aberto
a rua
um grito
a grande toalha do silêncio verde

António Ramos Rosa

sexta-feira, 28 de março de 2014

Um poema por dia...nº9

POVOAMENTO

No teu amor por mim há uma rua que começa
Nem árvores nem casas existiam
antes que tu tivesses palavras
e todo eu fosse um coração para elas
Invento-te e o céu azula-se sobre esta
triste condição de ter de receber
dos choupos onde cantam
os impossíveis pássaros
a nova primavera
Tocam sinos e levantam voo
todos os cuidados
Ó meu amor nem minha mãe
tinha assim um regaço
como este dia tem
E eu chego e sento-me ao lado
da primavera


Ruy Belo

quinta-feira, 27 de março de 2014

Um poema por dia...nº8


O menino de sua mãe

No plaino abandonado
Que a morna brisa aquece,
De balas trespassado-
Duas, de lado a lado-,
Jaz morto, e arrefece.

Raia-lhe a farda o sangue.
De braços estendidos,
Alvo, louro, exangue,
Fita com olhar langue
E cego os céus perdidos.

Tão jovem! Que jovem era!
(agora que idade tem?)
Filho unico, a mãe lhe dera
Um nome e o mantivera:
«O menino de sua mãe.»

Caiu-lhe da algibeira
 A cigarreira breve.
Dera-lhe a mãe. Está inteira
E boa a cigarreira.
Ele é que já não serve.

De outra algibeira, alada
Ponta a roçar o solo,
A brancura embainhada
De um lenço… deu-lho a criada
Velha que o trouxe ao colo.

Lá longe, em casa, há a prece:
“Que volte cedo, e bem!”
(Malhas que o Império tece!)
Jaz morto e apodrece
O menino da sua mãe

Fernando Pessoa

quarta-feira, 26 de março de 2014

Um poema por dia...nº7

Saí do comboio,

Saí do comboio,
Disse adeus ao companheiro de viagem
Tínhamos estado dezoito horas juntos..
A conversa agradável
A fraternidade da viagem.
Tive pena de sair do comboio, de o deixar.
Amigo casual cujo nome nunca soube.
Meus olhos, senti-os, marejaram-se de lágrimas...
Toda despedida é uma morte...
Sim toda despedida é uma morte.
Nós no comboio a que chamamos a vida
Somos todos casuais uns para os outros,
E temos todos pena quando por fim desembarcamos.
Tudo que é humano me comove porque sou homem.
Tudo me comove porque tenho,
Não uma semelhança com ideias ou doutrinas,
Mas a vasta fraternidade com a humanidade verdadeira.
A criada que saiu com pena
A chorar de saudade
Da casa onde a não tratavam muito bem...
Tudo isso é no meu coração a morte e a tristeza do mundo.
Tudo isso vive, porque morre, dentro do meu coração.
E o meu coração é um pouco maior que o universo inteiro.

Álvaro de Campos

terça-feira, 25 de março de 2014

Um Poema Por dia...nº6


Palácio da Ventura

Sonho que sou um cavaleiro andante.
Por desertos, por sóis, por noite escura,
Paladino do amor, busco anelante
O palácio encantado da Ventura!

Mas já desmaio, exausto e vacilante,
Quebrada a espada já, rota a armadura...
E eis que súbito o avisto, fulgurante
Na sua pompa e aérea formosura!

Com grandes golpes bato à porta e brado:
Eu sou o Vagabundo, o Deserdado...
Abri-vos, portas de ouro, ante meus ais!

Abrem-se as portas d' ouro, com fragor...
Mas dentro encontro só, cheio de dor,

Silêncio e escuridão - e nada mais!

Antero de Quental

sábado, 22 de março de 2014

Um poema por dia...nº5

As palavras que te envio são interditas

As palavras que te envio são interditas
até, meu amor, pelo halo das searas;
se alguma  regressasse, nem já reconhecia
o teu nome nas suas curvas claras.

Dói-me esta água, este ar que se respira,
dói-me esta solidão de pedra escura,
estas mãos nocturnas onde aperto
os meus dias quebrados na cintura.

E a noite cresce apaixonadamente.
Nas suas margens nuas, desoladas,
cada homem tem apenas para dar
um horizonte de cidades bombardeadas.

                      Eugénio de Andrade

sexta-feira, 21 de março de 2014

Um poema por dia...nº4

Ao rosto vulgar dos dias...

Monstros e homens lado a lado,
Não à margem, mas na própria vida.
Absurdos Monstros que circulam
Quase honestamente.
Homens atormentados, divididos, fracos
Homens fortes, unidos, temperados
Ao rosto vulgar dos dias
Á vida cada vez mais recorrente
As imagens regressam já experimentadas,
Quotidianas, razoáveis, surpreendentes.
*
Imaginar, primeiro, é ver
Imaginar é conhecer, portanto agir.

Alexandre O'Neil

quinta-feira, 20 de março de 2014

Um poema por dia...nº3

Ausência

Por muito tempo achei que a ausência é falta.
E lastimava, ignorante, a falta.
Hoje não a lastimo.
Não há falta na ausência.
A ausência é um estar em mim.
E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços,
que rio e danço e invento exclamações alegres,
porque a ausência, essa ausência assimilada,
ninguém a rouba mais de mim.

Carlos Drummond de Andrade

quarta-feira, 19 de março de 2014

Um poema por dia...nº2

A noite desce...

Como pálpebras roxas que tombassem 
Sobre uns olhos cansados, carinhosas, 
A noite desce... Ah! doces mãos piedosas 
Que os meus olhos tristíssimos fechassem! 

Assim mãos de bondade me embalassem! 
Assim me adormecessem, caridosas, 
E em braçadas de lírios e mimosas, 
No crepúsculo que desce me enterrassem! 

A noite em sombra e fumo se desfaz... 
Perfume de baunilha ou de lilás, 
A noite põe-me embriagada, louca! 

E a noite vai descendo, muda e calma... 
Meu doce Amor, tu beijas a minh’alma 
Beijando nesta hora a minha boca! 


Florbela Espanca

terça-feira, 18 de março de 2014

Um poema por dia.... nº 1

Sossega, coração! Não desesperes! 
Talvez um dia, para além dos dias, 
Encontres o que queres porque o queres. 
Então, livre de falsas nostalgias, 
Atingirás a perfeição de seres. 
Mas pobre sonho o que só quer não tê-lo! 
Pobre esperença a de existir somente! 
Como quem passa a mão pelo cabelo 
E em si mesmo se sente diferente, 
Como faz mal ao sonho o concebê-lo! 
Sossega, coração, contudo! Dorme!
O sossego não quer razão nem causa.
Quer só a noite plácida e enorme,
A grande, universal, solente pausa
Antes que tudo em tudo se transforme.

Fernando Pessoa, 2-8-1933.