quinta-feira, 29 de maio de 2014

Pureza

"Todo este tempo continuei a amar Dora, e com intensidade crescente. Pensar nela constituía o meu refúgio no meio das desilusões e tristezas, o que de certa maneira me compensou da perda do amigo. Quanto mais me lastimava, a mim ou aos outros, mais achava consolo na recordação de Dora. Quanto maior fosse a porção de mentiras e sofrimentos deste mundo, maior brilho tomava no zénite a estrela pura que se chamava Dora. Não me parece que tivesse uma ideia muito certa da natureza de Dora nem do seu parentesco com os entes siderais; mas estou convencido de que repudiaria indignado a hipótese de ela ser apenas uma criatura humana, como qualquer outra rapariga do nosso mundo.
Estava, se assim me posso exprimir, todo impregnado de Dora. Do oceano do meu amor podia tirar a água necessária para afogar quem quisesse: ainda ficaria bastante para o resto da minha vida."

David Copperfield, Charles Dickens

sexta-feira, 23 de maio de 2014

Nas grandes horas em que a insónia avulta 
Como um novo universo doloroso, 
E a mente é clara com um ser que insulta 
O uso confuso com que o dia é ocioso, 

Cismo, embebido em sombras de repouso 
Onde habitam fantasmas e a alma é oculta, 
Em quanto errei e quanto ou dor ou gozo 
Me farão nada, como frase estulta. 

Cismo, cheio de nada, e a noite é tudo. 
Meu coração, que fala estando mudo, 
Repete seu monótono torpor 

Na sombra, no delírio da clareza, 
E não há Deus, nem ser, nem Natureza 
E a própria mágoa melhor fora dor. 

Fernando Pessoa

quarta-feira, 30 de abril de 2014

David Copperfield

"Não me importava de partir. Encontrava-me em tal estado de embrutecimento que o meu desejo era reencontrar Steerforth, se bem que por trás dele aparecesse a sombra de Creakle. Mais uma vez apareceu ao portão o carroceiro Barkis e mais uma vez a senhora Murdstone avisou a minha mãe com um «Clara!» enérgico quando ela se inclinou para me dar o beijo de despedida.
Beijei-a também, assim como ao meu irmãozinho, e então senti-me triste, não, porém, de me ir embora, pois entre nós cavara-se um abismo e a separação já existia. O seu adeus, embora caloroso, não está tão presente na minha memória como o que se seguiu.
Achava-me na carroça quando a ouvi pronunciar o meu nome. Voltei-me e vi-a à porta, com o pequenito nos braços, erguendo-o para que eu o contemplasse. O tempo ainda se mantinha frio, mas sem vento. Nem um cabelo, nem uma dobra do seu vestido se moveu enquanto ela ali ficou olhando-me intensamente e segurando sempre a criança à altura da cabeça.
Foi assim que a perdi. Foi assim que a evoquei mais tarde, no Internato - uma presença silenciosa junto da minha cama - ; olhando-me com o mesmo olhar fixo e o bebé erguido nos braços."

Charles Dickens, David Copperfield

segunda-feira, 28 de abril de 2014

Um poema por dia...nº27

Soneto do amor e da mortequando eu morrer murmura esta canção 
que escrevo para ti. quando eu morrer 
fica junto de mim, não queiras ver 
as aves pardas do anoitecer 
a revoar na minha solidão. 

quando eu morrer segura a minha mão, 
põe os olhos nos meus se puder ser, 
se inda neles a luz esmorecer, 
e diz do nosso amor como se não 

tivesse de acabar, sempre a doer, 
sempre a doer de tanta perfeição 
que ao deixar de bater-me o coração 
fique por nós o teu inda a bater, 
quando eu morrer segura a minha mão. 

Vasco Graça Moura, in "Antologia dos Sessenta Anos"



quinta-feira, 17 de abril de 2014

Um poema por dia...nº 26

Porque

Porque os outros se mascaram mas tu não 
Porque os outros usam a virtude 
Para comprar o que não tem perdão. 
Porque os outros têm medo mas tu não.

Porque os outros são os túmulos caiados 
Onde germina calada a podridão. 
Porque os outros se calam mas tu não.

Porque os outros se compram e se vendem 
E os seus gestos dão sempre dividendo. 
Porque os outros são hábeis mas tu não.

Porque os outros vão à sombra dos abrigos 
E tu vais de mãos dadas com os perigos. 
Porque os outros calculam mas tu não.

Sophia de Mello Breyner Andresen

quarta-feira, 16 de abril de 2014

Um poema (?) por dia...nº25

Doem-me a cabeça e o universo. As dores físicas mais nitidamente dores que as morais, desenvolvem, por um reflexo no espírito, tragédias incontidas nelas. Trazem uma impaciência de tudo que, como é de tudo, não exclui nenhuma das estrelas.

Não comungo, não comunguei nunca, não poderei, suponho, alguma vez comungar aquele conceito bastardo pelo qual somos, como almas, consequências de uma coisa material chamada cérebro, que existe, por nascença, dentro de outra coisa material chamada crânio. Não posso ser materialista, que é o que, creio, se chama àquele conceito, porque não posso estabelecer uma relação nítida - uma relação visual, direi - entre uma massa visível de matéria cinzenta, ou de outra cor qualquer, e esta coisa eu que por detrás do meu olhar vê os céus e os pensa, e imagina céus que não existem. Mas, ainda que nunca possa cair no abismo de supor que uma coisa possa ser outra só porque estão no mesmo lugar, como a parede e a minha sombra nela, ou que depender a alma do cérebro seja mais que depender eu, para o meu trajecto, do veículo em que vou, creio, todavia, que há entre o que em nós é só espírito e o que em nós é espírito do corpo uma relação de convívio em que podem surgir discussões. E a que surge vulgarmente é a de a pessoa mais ordinária incomodar a que o é menos.

Dói-me a cabeça hoje, e é talvez do estômago que me dói. Mas a dor, uma vez sugerida do estômago à cabeça, vai interromper as meditações que tenho por detrás de ter cérebro. Quem me tapa os olhos não me cega, porém impede-me de ver. E assim agora, porque me dói a cabeça, acho sem valia nem nobreza o espectáculo, neste momento monótono e absurdo, do que aí fora mal quero ver como mundo. Dói-me a cabeça, e isto quer dizer que tenho consciência de uma ofensa que a matéria me faz, e que, porque como todas as ofensas, me indigna, me predispõe para estar mal com toda a gente, incluindo a que está próxima porém me não ofendeu.

O meu desejo é de morrer, pelo menos temporariamente, mas isto, como disse, só porque me dói a cabeça. E neste momento, de repente, lembra-me com que melhor nobreza um dos grandes prosadores diria isto. Desenrolaria, período a período, a mágoa anónima do mundo; aos seus olhos imaginadores de parágrafos surgiriam, diversos, os dramas humanos que há na terra, e através do latejar das fontes febris erguer-se-ia no papel toda uma metafísica da desgraça. Eu, porém, não tenho nobreza estilística. Dói-me a cabeça porque me dói a cabeça. Dói-me o universo porque a cabeça me dói. Mas o universo que realmente me dói não é o verdadeiro, o que existe porque não sabe que existo, mas aquele, meu de mim, que, se eu passar as mãos pelos cabelos, me faz parecer sentir que eles sofrem todos só para me fazerem sofrer.

Livro do Desassossego, Bernardo Soares

terça-feira, 15 de abril de 2014

Um poema por dia...nº24

Quand'eu vejo las ondas
e las muyt'altas ribas,
logo mo veen ondas
al cor, pola velyda:
maldito seja 'l mare
que mi faz tanto male!

Nunca vejo las ondas

nen as altas debrocas
que mi non venham ondas
al cor, pola fremosa:
maldito seja 'l mare
que mi faz tanto male!

Se eu vejo las ondas

e vejo las costeyras,
logo mi veen ondas
al cor, pola ben feyta:
maldito seja 'l mare
que mi faz tanto male!

Rui Fernandes de Santiago