domingo, 21 de fevereiro de 2010

Do "Livro so Desassossego"

" A vida prejudica a expressão da vida. Se eu tivesse um grande amor nunca o poderia contar.

Eu próprio não sei se este eu, que vos exponho, por estas coleantes páginas fora, realmente existe ou é apenas um conceito estético e falso que fiz de mim próprio. Sim, é assim. Vivo-me esteticamente em outro. Esculpi a minha vida como a uma estátua de matéria alheia ao meu ser. Às vezes não me reconheço, tão exterior me pus a mim, e tão de modo puramente artístico empreguei a minha consciência de mim próprio. Quem sou por detrás desta irrealidade? Não sei. Devo ser alguém. E se não busco viver, agir, sentir, é - crede-me bem - para não perturbar as linhas feitas da minha personalidade suposta. Quero ser tal qual quis ser e não sou. Se eu cedesse destruir-me-ia. Quero ser uma obra de arte, da alma pelo menos, já que do corpo não posso ser. Por isso me esculpi em calma e alheamento e me pus em estufa, longe dos ares frescos e das luzes francas - onde a minha artificialidade, flor absurda, floresça em afastada beleza."

Bernardo Soares

sábado, 13 de fevereiro de 2010

O meu livro

Por mais que eu tente, nunca conseguirei reunir o número de livros que sempre desejei ter. Número infindável, em comparação com a mediocridade da minha biblioteca caseira.
Mas o gozo que me de ter aquele objecto, no qual eu me afundo, viajo, divago e por vezes me entristeço. Mas que gozo poder tocar-te, abrir-te, desfolhar-te, ler-te, decifrar tudo aquilo que me queres dizer, tudo aquilo que queres que eu descubra. Serão as minhas mãos dignas de te tocar? Os meus olhos dignos de te ler?
Sorvo cada letra, cada palavra com a fome de quem acabou de acordar; exalto-te com a fúria de quem acabou de nascer e assim dá primeira golfada de ar.
A sensação de não estar presente neste mundo insano, de me abstrair da realidade que não existe. Voar para longe, para o irreal...
Assim eu me acho, quando te leio...

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

Perdi-me!

Ando com sintomas estranhos... E não encontro qualquer explicação médica ou científica para aquilo que estou a sentir neste momento... Um aperto no peito, uma bola no estômago, uma vontade de viver tudo,e ao mesmo tempo de me isolar, desaparecer, compreender o que se passa... Uma falta de concentração enorme que me atrapalha em tudo e ao mesmo tempo me leva a experimentar sensações que não me lembro de ter vivido antes... É um encantamento! Um encantamento sem restrições... E tudo acontece de uma forma tão rápida, avassaladora, urgente... Dá vontade de rir e vontade de chorar... Vontade de compreender... E uma vontade tão grande de estar junto, estar sempre junto... O que se passa comigo? Que doença é esta que me tomou? Perdi-me...

sábado, 16 de janeiro de 2010

Não digo que não

Estou sozinha, mas o Inverno está lá fora. Não penso fazer-lhe companhia. Prefiro o conforto da minha quietude. Hoje estou pacífica. Hoje tudo está calmo. E não quero mais voltar a ontem. Prefiro o sossego e a certeza de que tudo está bem. Encostar a cabeça na minha almofada e saber que vou acordar igual. Não preciso de mais nada... Não vou dizer que não...

sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

Pessoa...como sempre

Tenho dó das estrelas
Luzindo há tanto tempo,
Há tanto tempo...
Tenho dó delas.

Não haverá um cansaço
Das coisas,
De todas as coisas,
Como das pernas ou de um braço?

Um cansaço de existir,
De ser,
Só de ser,
O ser trise brilhar ou sorrir...

Não haverá, enfim,
Para as coisas que são,
Não a morte, mas sim
Uma outra espécie de fim,
Ou uma grande razão-
Qualquer coisa assim
Como um perdão?


Fernando Pessoa

quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

Até ao fim

-Às vezes pergunto-me, quero dizer, perguntava-me:como é que chegou tudo aqui?- disse Miguel.- Perguntava-me pergunto-me, mas não muito. Tenho asco ao porquê. É a fórmula dos desocupados, dos tinhosos, dos raquíticos. Que adianta o porquê? A razão escolhe-se para ser razão. Antes de ela ser escolhida já se foi o que se tinha de ser. Mas às vezes perguntava-me como é que vim dar aqui?
Sinto no corpo o frio da madrugada. O dia despreende-se da noite devagar, traz consigo os restos da humidade. Mas no fundo do escuro, o sinal indeciso de um dia novo, como dizê-lo?um início com o esquecimento que lhe pertence do que é ruína e morte.
-Como é que foi?
Não há como é que, há só o ter chegado, que é que interessa? Não me sinto confortável em parte nenhuma do meu ser, o meu erro é orgânico e não é assim erro nenhum. Mas não me sinto bem nele, devo ter nascido em mim por engano.


Até ao fim, Vergílio Ferreira

terça-feira, 5 de janeiro de 2010

Prometo não mais voltar as costas à poesia...

Começarei revivendo o Poesias de Hoje e de Sempre.

VIOLONCELO

Chorai, arcadas
Do violoncelo,
Convulsionadas.
Pontes aladas
De pesadelo...

De que esvoaçam,
Brancos, os arcos.
Por baixo passam,
Se despedaçam,
No rio os barcos.

Fundas, soluçam
Caudais de choro.
Que ruínas, ouçam...
Se se debruçam,
Que sorvedouro!

Lívidos astros,
Soidões lacustres...
Lemes e mastros...
E os alabastros
Dos balaústres!

Urnas quebradas.
Blocos de gelo!
Chorai, arcadas
Do violoncelo,
Despedaçadas...

Camilo Pessanha