segunda-feira, 6 de outubro de 2014

Dor

Doem-me a cabeça e o universo. As dores físicas mais nitidamente dores que as morais, desenvolvem, por um reflexo no espírito, tragédias incontidas nelas. Trazem uma impaciência de tudo que, como é de tudo, não exclui nenhuma das estrelas.

Não comungo, não comunguei nunca, não poderei, suponho, alguma vez comungar aquele conceito bastardo pelo qual somos, como almas, consequências de uma coisa material chamada cérebro, que existe, por nascença, dentro de outra coisa material chamada crânio. Não posso ser materialista, que é o que, creio, se chama àquele conceito, porque não posso estabelecer uma relação nítida - uma relação visual, direi - entre uma massa visível de matéria cinzenta, ou de outra cor qualquer, e esta coisa eu que por detrás do meu olhar vê os céus e os pensa, e imagina céus que não existem. Mas, ainda que nunca possa cair no abismo de supor que uma coisa possa ser outra só porque estão no mesmo lugar, como a parede e a minha sombra nela, ou que depender a alma do cérebro seja mais que depender eu, para o meu trajecto, do veículo em que vou, creio, todavia, que há entre o que em nós é só espírito e o que em nós é espírito do corpo uma relação de convívio em que podem surgir discussões. E a que surge vulgarmente é a de a pessoa mais ordinária incomodar a que o é menos.

Dói-me a cabeça hoje, e é talvez do estômago que me dói. Mas a dor, uma vez sugerida do estômago à cabeça, vai interromper as meditações que tenho por detrás de ter cérebro. Quem me tapa os olhos não me cega, porém impede-me de ver. E assim agora, porque me dói a cabeça, acho sem valia nem nobreza o espectáculo, neste momento monótono e absurdo, do que aí fora mal quero ver como mundo. Dói-me a cabeça, e isto quer dizer que tenho consciência de uma ofensa que a matéria me faz, e que, porque como todas as ofensas, me indigna, me predispõe para estar mal com toda a gente, incluindo a que está próxima porém me não ofendeu.

O meu desejo é de morrer, pelo menos temporariamente, mas isto, como disse, só porque me dói a cabeça. E neste momento, de repente, lembra-me com que melhor nobreza um dos grandes prosadores diria isto. Desenrolaria, período a período, a mágoa anónima do mundo; aos seus olhos imaginadores de parágrafos surgiriam, diversos, os dramas humanos que há na terra, e através do latejar das fontes febris erguer-se-ia no papel toda uma metafísica da desgraça. Eu, porém, não tenho nobreza estilística. Dói-me a cabeça porque me dói a cabeça. Dói-me o universo porque a cabeça me dói. Mas o universo que realmente me dói não é o verdadeiro, o que existe porque não sabe que existo, mas aquele, meu de mim, que, se eu passar as mãos pelos cabelos, me faz parecer sentir que eles sofrem todos só para me fazerem sofrer.

Bernardo Soares, Livro do Desassossego

quarta-feira, 1 de outubro de 2014

O mar revolto





Por vezes, para atingir um estado de calmaria e sossego, é preciso passar por uma tempestade. A minha já há muito que se levantou. No início, confusa, desorganizada, caótica. O meu barco virou e vi-me perdida em alto mar, sozinha, sem saber como reagir, e tentada a deixar-me levar por aquelas ondas que pareciam querer engolir-me. Deixei de ver as coisas nitidamente, demasiado embrulhada no meio daquela confusão de sentimentos.

Mas as tempestades não duram sempre. O mar acalma, o sol aparece e surge no horizonte um arco-íris de possibilidades. 




*Quadro 1: Naufrágio (1805), William Turner, Tate Gallery - Londres
*Quadro 2: Castelo Arundel, com arco-iris (1824), William Turner, Mus. Britânico - Londres


segunda-feira, 29 de setembro de 2014

O amor é o amor



O amor é o amor - e depois?!
Vamos ficar os dois
a imaginar, a imaginar?..

O meu peito contra o teu peito,
cortando o mar, cortando o ar.
Num leito
há todo o espaço para amar!

Na nossa carne estamos
sem destino, sem medo, sem pudor,
e trocamos - somos um? somos dois? -
espírito e calor!
O amor é o amor - e depois?!


Alexandre O'Neil


quinta-feira, 25 de setembro de 2014

Uma nova noite



A noite sempre foi para mim um espaço de isolamento. Ao mesmo tempo que me apresentava o conforto de poder ser verdadeiramente eu, também me mostrava que esse eu estava votado à solidão. Mesmo que acompanhada, nunca consegui que alguém compreendesse o que esse espaço significava para mim.
A escuridão atrai-me. A melancolia também. Do mesmo modo, sinto-me atraída pela voluptuosidade das horas nocturnas, pela capacidade de entrega que elas me trazem, pela liberdade que me dão... Nunca ninguém me compreendeu. Nunca ninguém sentiu isto da mesma maneira que eu.
Mas agora uma nova noite abre-se para mim. Vou sair da prisão em que me encarcerei e acolhê-la de braços abertos. Talvez não tenha que procurar mais. Talvez seja uma noite definitiva, cheia de estrelas, como a de Van Gogh.




*Pintura: A noite estrelada, Vincent Van Gogh

terça-feira, 9 de setembro de 2014

Para atravessar contigo o deserto do mundo



Para atravessar contigo o deserto do mundo
Para enfrentarmos juntos o terror da morte
Para ver a verdade para perder o medo
Ao lado dos teus passos caminhei

Por ti deixei meu reino meu segredo
Minha rápida noite meu silêncio
Minha pérola redonda e seu oriente
Meu espelho minha vida minha imagem
E abandonei os jardins do paraíso

Cá fora à luz sem véu do dia duro
Sem os espelhos vi que estava nua
E ao descampado se chamava tempo

Por isso com teus gestos me vestiste
E aprendi a viver em pleno vento

Sophia de Mello Breyner Andresen
Livro Sexto (1962)

quinta-feira, 29 de maio de 2014

Pureza

"Todo este tempo continuei a amar Dora, e com intensidade crescente. Pensar nela constituía o meu refúgio no meio das desilusões e tristezas, o que de certa maneira me compensou da perda do amigo. Quanto mais me lastimava, a mim ou aos outros, mais achava consolo na recordação de Dora. Quanto maior fosse a porção de mentiras e sofrimentos deste mundo, maior brilho tomava no zénite a estrela pura que se chamava Dora. Não me parece que tivesse uma ideia muito certa da natureza de Dora nem do seu parentesco com os entes siderais; mas estou convencido de que repudiaria indignado a hipótese de ela ser apenas uma criatura humana, como qualquer outra rapariga do nosso mundo.
Estava, se assim me posso exprimir, todo impregnado de Dora. Do oceano do meu amor podia tirar a água necessária para afogar quem quisesse: ainda ficaria bastante para o resto da minha vida."

David Copperfield, Charles Dickens

sexta-feira, 23 de maio de 2014

Nas grandes horas em que a insónia avulta 
Como um novo universo doloroso, 
E a mente é clara com um ser que insulta 
O uso confuso com que o dia é ocioso, 

Cismo, embebido em sombras de repouso 
Onde habitam fantasmas e a alma é oculta, 
Em quanto errei e quanto ou dor ou gozo 
Me farão nada, como frase estulta. 

Cismo, cheio de nada, e a noite é tudo. 
Meu coração, que fala estando mudo, 
Repete seu monótono torpor 

Na sombra, no delírio da clareza, 
E não há Deus, nem ser, nem Natureza 
E a própria mágoa melhor fora dor. 

Fernando Pessoa